Por: Geraldo Barros
Coordenador Científico do Cepea
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Data de publicação: 15/06/2020
Os dias e meses incertos e dolorosos que ora vivemos – que o mundo vive – com a pandemia de covid-19 e todos os seus desdobramentos nos trazem as mais variadas e preocupantes reflexões. É o extremo desconforto do desconhecimento e consequente imprevisibilidade de quase tudo. Não sabemos a duração da crise; quando (para não dizer: se) ela chegará a um fim; se, antes disso, ela pode se aprofundar ou não; se haverá recaídas. Se seremos capazes de nos organizar e em colaboração buscar a ansiada superação ou se nos poremos a digladiar diante de tantas ameaças e oportunidades que vêm no bojo da crise.
Vale lembrar que bem no início do século XX, um surto de febre amarela – cuja ocorrência no Brasil vem do século XVII até os dias de hoje – no Rio de Janeiro já expusera como o custo da (des)organização socioeconômica e política de então já recaía desproporcionalmente sobre a parcela marginalizada da população. O roteiro e os atores daquela tragédia são bem semelhantes aos da atual. Em 1918, quando fomos atacados pela “gripe espanhola”, dezenas de milhares de brasileiros perderam suas vidas. Não tínhamos sequer um ministério da saúde; embora tê-lo não seja suficiente, como sabemos todos. Mas, mesmo contando com um século de avanços são muitas as fragilidades do nosso sistema de saúde – na verdade, falhas de nosso sistema socioeconômico. O Brasil precisa empreender uma imensa agenda de reformas em quase todas as áreas de atividade: focando-se em potencializar o crescimento econômico e, distribuir bem os seus frutos, guindar o bem-estar da população a níveis compatíveis com o nível de recursos com que o País conta.
O Brasil não é um novato em termos de crises ou grandes transformações mundiais. Até que o esforço público de industrialização se intensificasse nos anos 1930, vivíamos em ciclos ao redor da agropecuária, com seus laços a jusante e a montante – o que chamamos hoje de agronegócio. Esses ciclos eram precipitados por transformações que ocorriam mundo afora, com o Brasil a reboque do “dono do mundo” da vez.
O início de nossa história se deu com o avanço dos conhecimentos de navegação, permitindo a exploração por países europeus no Oceano Atlântico e a colonização do Novo Mundo. O Brasil viveu os ciclos do Pau-Brasil (nos rumos da Mata Atlântica do Nordeste e Sudeste), do Açúcar (séculos XVI a XVIII do Nordeste ao Sudeste) e do Ouro e Mineração em geral avançando pelo Centro-Oeste (século XVIII). A Europa mandava, o Brasil fazia. A agropecuária de mercado interno acompanhava a migração dessas atividades líderes, assegurando a alimentação das famílias dos ocupados nesses afazeres. Ao Sul chegava o gado bovino para o charque e o couro, também exportado. A ocupação territorial se estendia do Nordeste para as demais regiões em resposta à pujança da demanda europeia que estimulava as atividades extrativistas e as grandes plantações, colonizando o Brasil como economia primário-exportadora fundada no escravagismo, cujas raízes na sociedade, ainda hoje, não foram extirpadas.
As marchas e contramarchas eram concatenadas. Ao longo do século XVIII, o algodão se expandia seguindo os passos firmes da Revolução Industrial Inglesa. O café migrando pelo Brasil, passa a ter em São Paulo seu maior produtor em torno de 1880. A demanda global cresce substancialmente com a popularização do café junto ao operariado da indústria americano que deslanchava nessa época. O café levava o capitalismo ao campo, com o lento processo de abolição (imposto de fora) e acelerada imigração de europeus e orientais – atraídos por expectativas com pouco lastro e/ou expelidos de suas origens por dificuldades econômicas, conflitos e pestes. Transformavam o Brasil com a cultura e capital humano que traziam consigo. Emerge uma sinergia forte nos negócios, que estimula a infraestrutura ferroviária, especialmente em torno do café, voltada para exportação com o suporte de capital estrangeiro. (E lamentavelmente abandonada com o ímpeto industrializante brasileiro dos anos 1930-50). A pesquisa autóctone começa a avançar com a criação do IAC (Instituto Agronômico). No outro extremo do País, ao final do século XIX, a borracha se desenvolvia no Norte, em consonância com o surgimento dos pneus com a indústria automobilística até perder competitividade para a Ásia e África.
Em 1900, o setor público brasileiro era relativamente pequeno, contentando-se com uma carga tributária de 10%. Nesse ano, 45% do PIB vinha da agropecuária (sem incluir a agroindústria), que ocupava 52% da população; a indústria contribuía com apenas 10% do PIB, quase a totalidade de base agropecuária. É dessa época o início da crise do café: o entusiasmo com a produção, na virada do século, já apontava para excedentes no mercado. A queda internacional de preço não chegava plenamente ao produtor devido às desvalorizações cambiais e aos programas de apoio ao café – setor que havia ganhado grande peso na formulação de políticas econômicas.
Em 1930, quando a crise mundial havia eclodido, o Brasil acumulava imenso estoque invendável de café. O governo, mais concretamente a sociedade, teve de absorver (perdoar) 50% das dívidas dos cafeicultores. Ademais, de 1931 a 1944, 100 milhões de sacas de café (38% da produção acumulada no período) foram compradas pelo governo, das quais 80% foram queimadas. Quase tudo financiado com emissão monetária. O impacto fiscal foi bem pequeno, com carga fiscal indo de 12% para 15% na década de 1930. Esse apoio monumental ao café injetou recursos suficientes para estimular a economia, que foi turbinada ainda pelas desvalorizações cambiais e restrições às importações. Um pacote tão potente levaria à recuperação da atividade econômica já em 1932. A ação do governo brasileiro ficaria entendida como um experimento Keynesiano anterior à obra do grande economista. No triênio 1929/31, o PIB brasileiro caiu a uma taxa acumulada de 4,3%; a indústria, 7,7%; a agropecuária, 4,9%. Já no triênio seguinte (1932/34), as taxas acumuladas foram altamente positivas: 24%, 26% e 26%, a despeito das quedas das exportações e do investimento externo. De 1929 a 1933, acumulou-se uma deflação de 13%. De 1933 a 1937, a inflação alcançou 20%. Nos Estados Unidos, berço da crise, e onde houve atraso na adoção de medidas de estímulo, a produção só retornaria ao nível pré-crise em 1937.
Como costuma acontecer, os estímulos não se moderaram após a recuperação. Principalmente diante da potência demostrada pelo Estado na superação da crise. No Brasil, já sob o regime autoritário de Vargas, havia condições para que fosse imposto um grande projeto nacional: realizar o sonho de tornar o Brasil um país industrializado (desenvolvido?). A indústria passaria por um processo acelerado de crescimento a qualquer custo que seguiria até 1980 –, passando de 15% para 35% do PIB, beneficiando-se das poupanças interna (extraída da agropecuária) e externa (investimento e endividamento externos). Política monetária expansionista se dava na forma de gastos extra-orçamentários, acionando-se bancos oficiais e empresas estatais, em que pese a carga tributária ter evoluído voluptuosamente de menos de 15% a 25% do PIB, configurando uma aparente (disfarçada) responsabilidade fiscal. A inflação seguiu um processo acelerado nas próximas décadas: 10% ao ano na década de 1940, mais de 20% na de 1950, mais de 40% nas décadas de 1960 e 1970. E continuou a crescer, chegando a mais de 500% ao ano na década de 1980.
Nos anos 1960, quando a fome e a carestia sufocavam a grande maioria da população – algo já detectado por Josué de Castro na década de 1940, abre-se um espaço no industrialismo, e volta-se a atenção também para a agropecuária. Programas de crédito, preços e, mais importante, ciência e tecnologia voltadas para o setor foram implementados e mantidos nas décadas seguintes. Duas décadas depois, quando num crescendo contínuo, esses programas produziam seus resultados (com maior abastecimento a preços mais acessíveis e maiores exportações), a inflação pode ser controlada com o Plano Real em 1994. Seguiu-se, então, um processo de reformatação do aparato macroeconômico: rígido controle monetário e aumento substancial da carga fiscal para substituir o imposto inflacionário, não suficiente, porém, para conter a escalada da dívida pública. Programas de transferência de renda – grandes aumentos reais de salário mínimo, Bolsa Família, por exemplo – tornaram-se viáveis porque a demanda por alimentos que esses programas geravam eram atendidas pelo agronegócio a preços estáveis ou decrescentes.
A partir desses anos, portanto, o agronegócio mostra amadurecimento, crescendo com base na produtividade. Na verdade, sua produtividade, após anos de estagnação e queda no pós-guerra, a partir dos anos 1970 já começara a crescer expressivamente. Tal foi a eficiência no uso dos recursos sociais investido no setor, que, nos anos 1990, o apoio ao agronegócio (via crédito, preços e seguros) praticamente se desfez. Atualmente, o suporte público à agropecuária é de apenas 1,1% do Valor da Produção. A média mundial é de 16%. Mesmo assim, desde os anos 1990, observa-se queda real de preços ao produtor e expressivas conquistas no mercado internacional. De 1995 a 2019, o PIB da agropecuária cresceu 130% e o do Brasil todo, 70%. O PIB da indústria, quase estagnada desde 1980 (quando teria amadurecido), aumentou de 1995 a 2019 apenas 33%. Os preços reais da agropecuária caíram 40% ao produtor, enquanto ao consumidor, os preços reais dos alimentos praticamente não se alteraram.
Em 2008, o Brasil foi novamente surpreendido pela crise financeira internacional. Iniciada nos EUA no setor imobiliário, arrastou o Sistema Financeiro – que passara por um crescente processo de desregulamentação (e concentração) desde os anos 1980 – para uma crise espetacular. Nos EUA, o PIB caiu 0,3% em 2008 e 3,6% em 2009. O socorro ao desastre veio da injeção imensa de recursos da sociedade: US$ 800 bilhões pelo governo para acudir os bancos e US$ 4,5 trilhões pelo Federal Reserve para compra de títulos de dívida de empresas. Na Europa, atingida pela ressaca norte-americana, o socorro foi de US$ 2,2 trilhões. Na China, contabilizou-se uma injeção de US$ 600 bilhões. O Brasil, que, na década vinha crescendo a 3,7% ao ano (surfando na onda do boom das commodities), sofreu uma leve queda de 0,3% em 2009 e já em 2010 recuperava-se com uma taxa de 7,3%.
A receita brasileira para livrar-se da recessão foi, de um ano para outro, aplicar estímulo fiscal (redução no superávit primário) de quase 3% do PIB (cerca de US$ 50 bilhões) e uma expansão no crédito de 14% (US$ 100 bilhões). O estímulo, infelizmente, seguiu a regra de continuar mesmo após ter ocorrido a recuperação, tornando-se desnecessário: os superávits fiscais primários foram caindo até transformarem-se déficits a partir de 2014. O crédito continuou se expandindo: aumento real de 40% desde a crise até 2014. Esses estímulos foram perdendo eficácia à medida que a dívida pública passou a ser vista como excessivamente arriscada e a população foi ficando endividada em excesso. Corrupção e crise política profunda bem como o início da tomada de medidas de contenção para consertar a economia completaram o quadro necessário para lançar o Brasil em dois anos de recessão (em 2015 e 2016), seguidos de crescimento quase desprezível desde então. O desemprego e a informalidade chegaram a níveis assustadores.
É nesse cenário que experimentamos novo impacto de uma crise mundial, quando a covid-19 irrompe no Brasil em 2020. Seu impacto sobre a economia decorre das medidas de prevenção – isolamento social, lockdown, etc. – para, contendo a transmissão, evitar a saturação do sistema de saúde e, portanto, mortes. Trata-se de choque negativo muito forte de demanda que, prolongando-se, pode fragilizar a maioria empresas, tirar muitas do mercado, agravando o desemprego. Ainda não se tem uma contabilidade completa e atual dessas consequências altamente danosas. Ademais, a queda severa de demanda pode comprometer a capacidade produtiva da economia. Dificilmente haverá um movimento pendular, voltando-se à trajetória (claudicante, diga-se) anterior após uma superação da pandemia quando e se ela ocorrer. Ou seja, tem-se um choque de oferta em resposta a um choque de demanda, que pode agravar e prolongar a crise econômica.
Do ponto de vista do agronegócio, impactos negativos, se ocorrerem, não serão grandes ou generalizados. As decisões do produtor rural são tomadas com antecedência à disponibilização da produção no mercado, como acontece atualmente. Além disso, como regra, as altas e baixas do setor são pouco relacionadas aos ciclos da economia, ao contrário da indústria e serviços. Em poucos casos, uma recessão no total da economia se acompanha de recessão agropecuária. Alimentação é item de demanda inelástica ao preço e à renda. O alto componente das exportações – de alimentos também, principalmente – é fator que atenua os choques na economia interna. Clima, pragas e doenças, choques internacionais e seus reflexos no câmbio podem desviar transitoriamente a produção de sua trajetória crescente de longo prazo, graças à produtividade. Durante a pandemia, problemas de produção e abastecimento não são esperados de forma expressiva; entretanto, nas fases de processamento poderão ocorrer problemas, algo a ser observado.
Com o setor público tomado por uma dura crise fiscal – cujo saneamento ainda é muito incerto, além de mais difícil ainda em meio à crise – recursos excepcionais e heterodoxos devem de ser usados, não muito diferentes em caráter das medidas dos anos 1930. Entretanto, o desarranjo da estrutura social brasileira é tamanho, que a reparação de danos à população carente é extremamente difícil e ineficaz. Um agravamento fiscal é esperado com certeza, porém, não se sabe quão profundo será ele, mesmo porque se desconhece a duração da pandemia e o volume de recursos que se fará necessário para pelo menos remediar as condições socioeconômicas enquanto ela permanecer e mesmo depois de sua atenuação, a depender do estado de “saúde” da economia quando isso se der.
A despeito de tanta incerteza, no campo da economia, não faltam os que se aventuram a previsões para os próximos meses e anos: teremos uma recuperação em V, dizem os otimistas; em U, os cautelosos; em W, os mais inseguros. Os pessimistas (realistas, dirão eles) escolhem o L, ou seja, não veem – nos moldes conhecidos – recuperação no horizonte. A covid-19 nada mais faz do que desnudar todos os descaminhos e consequentes fragilidades (mazelas) da humanidade. No Brasil essas fragilidades são alarmantes, tais os níveis de pobreza, desigualdade e informalidade (ausência do Estado). Terá chegado a hora de entregar os pontos, ou, então, transformar (radicalmente ou com diferentes graus de moderação) as maneiras que cada sociedade escolheu para se organizar para a sobrevivência (de sua maioria) e possível progresso de parte dela? Dependendo de como forem as transformações serão as consequências da próxima pandemia que nos espera – ou das próximas que nos aguardam.
Tudo isso, mais cedo ou mais tarde, em cada canto, vai se definir e se concretizar de uma forma ou de outra. Os primeiros movimentos se darão num cenário em que a mal conhecida (misteriosa?) e surpreendente China amadurece –, desfraldando um sistema político fechado e um econômico esdrúxulo, isto é, contraditoriamente, ao mesmo tempo, centralizado e capitalista. Incomoda e é confrontada pelos Estados Unidos, tendo à frente, no momento, um líder mercurial, mas, a médio prazo, inescapavelmente sob transformações estruturais na geração e distribuição de riqueza e nos direitos dos cidadãos (produzindo um rastilho que se estenderá mundo afora). Conseguirá fazê-lo ordenada e pacificamente? Os dois gigantes encontrarão uma fórmula de partilha consensual do poder e influência mundiais? Ou será necessário o conflito – frio ou quente – até que um deles prevaleça?
BARROS, G.S.C. O agronegócio, a pandemia e a economia mundial. Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), Piracicaba, junho de 2020.
Fonte: https://cepea.esalq.usp.br/br/opiniao-cepea/o-agronegocio-a-pandemia-e-a-economia-mundial.aspx